segunda-feira, julho 31, 2006

O significado da critica em Cabo Verde – algumas reflexões

A crítica teatral dentro do panorama específico de Cabo Verde é quase inexistente. Encontramos alguns artigos jornalísticos que dentro do carácter meramente informativo pontualmente fazem uma pequena reflexão acerca do fazer teatral, com pouca incisão, à excepção de alguns casos raros, em que encontramos uma reflexão mais incisiva sobre alguns espectáculos.
Isto deve-se concerteza ao próprio percurso teatral de Cabo Verde que ainda não criou espaço crítico.
Pecarei agora por me ausentar do contexto mindelense, que como é sabido, é o grande pólo de criação teatral na última década, pela simples razão de que me encontro neste momento no contexto e percurso teatral da ilha de Santiago, onde iniciei os caminhos da critica teatral. Mas no entanto este pecado será de fácil absolvição, pois mesmo em S. Vicente não tem havido lugar à crítica, ficando o texto jornalístico, pela simples informação e divulgação, sem reflexão complementar ao projecto cénico.
Acontece que em Santiago o teatro só acontece uma vez por ano na sua real acepção de acontecimento teatral – no Março Mês do teatro – durante o resto do ano e apesar das expectativas criadas, o teatro hiberna e só muito pontualmente podemos usufruir de acontecimento cénico. É um vazio que corta com a tão necessária continuidade da história do teatro e que consequentemente deixa a critica perder o fio estético, e obriga a começar de novo quando o teatro reaparece. E o entusiasma esvai-se.
Que papel poderá desempenhar a critica em Cabo Verde? Ao contrário do que acontece noutros países, aqui a crítica não assume um papel de divulgação de um espectáculo, uma vez que os projectos são duma efemeridade desinteressante, sempre que sai a critica já o espectáculo aconteceu, e o público não tem maneira de o rever e poder cruzar o olhar critico com o acontecimento cénico. Esta ausência de continuidade de projectos cénicos como que leva o critico a sentir uma entrega em vão, sem repercussões. Esta efemeridade, esta passagem tão fulminante de espectáculos pelo palco traz consigo várias desvantagens para o discurso crítico: um único olhar, sem hipóteses de poder assistir mais do que uma vez e assim tomar diferentes atitudes perante o objecto, a comparação de públicos não se produz, não se poderá analisar o crescimento do projecto, realidade presente em peças com temporadas, e resume-se sempre a um pós-espectáculo. E para a crítica a continuidade de projectos é matéria fundamental de enquadramento e reflexão.
Outra questão que pode limitar o discurso critico e a recepção deste, tem a ver com o facto de neste momento em Cabo Verde só se produzir um único discurso critico sobre um objecto cénico, o que leva a que a critica seja limitada a um só olhar, subjectivo e com os critérios únicos. Se outras criticas a um mesmo espectáculo houvessem, para além do discurso o leitor poderia aceder ao meta-discurso e perceber as ferramentas da crítica e com isso elaborar uma meta-reflexão. A pluralidade seria bem mais interessante. Assim como se produziria mais facilmente a revisão dos critérios por parte do crítico, inquietação fundamental para o legitimo discurso crítico. Assim como o criador cénico se questiona permanentemente sobre as suas opções, também o critico o deverá fazer, pois é ele também um criador.
Assim como a sua actualização de referências estéticas. E aqui questiono o que poderá significar esta actualização. Um critico com um universo referencial distante do contexto onde se realiza a critica, qual a atitude a tomar? Continuar no mesmo referente e tomar a atitude de olhar estrangeiro? Abandonar o referente que domina e construir um novo referente autista? Ou por outro lado, deverá cruzar os dois referentes e criar um discurso novo? Penso que a terceira atitude será a mais profícua, implicando no entanto um balançar constante e um trabalho de interpretação mais profundo, com base no contexto em que está mas cruzando sempre com o outro universo referencial.
Um outro ponto que analiso tem a ver com a relação entre o crítico e o editor, sendo que a critica existe nos meios de comunicação que o permitam, principalmente na imprensa. Sabendo da realidade da imprensa em Cabo Verde a critica vai a reboque. Em Cabo verde não existe jornal diário, o jornal mais recepcionado em Cabo Verde é semanal, o que desde logo imprime uma distância temporal entre a critica e o espectáculo (imaginemos uma peça que é apresentada no sábado, só na sexta seguinte sairá a sua reflexão) o que no entanto não é prejudicial, pois a reflexão critica não é espontânea e permite assim tempo de reflexão e de auscultação do público para além do tempo efusivo pós-espectáculo. No entanto, o facto de ser semanário demonstra as condições em que se encontra a imprensa em Cabo Verde, onde concerteza um espaço de critica não cabe na linha editorial, só em momentos pontuais de efusividade teatral como sejam o Março- Mês do teatro e o Festival Internacional de Teatro Mindelact.
Seja quais forem as condições de produção critica, no entanto, e é importante relevar esse facto, constitui a critica uma memória do espectáculo, memória registada que tem a mais-valia de fazer a história do teatro. E esse facto só por si valida seja qual for a critica e qual a recepção desta. Sabendo da efemeridade do acontecimento teatral, onde nem fotos, nem restos de adereços ou figurinos, nem vídeo, constituem a memória real do espectáculo teatral pela sua especificidade, a critica é mais um documento que ajudará a reconstituir o acontecimento., e dai, imprescindível.
Estamos a criar um percurso teatral, onde é fundamental a seu lado se ir construindo um percurso crítico. Toda a arte só existe se houver reflexão, interrogação e inovação. O gesto artístico precisa sempre de mediação critica.

sexta-feira, julho 07, 2006

" A função da crítica teatral no novo século" de Sebastião Milaré

A crítica é inerente à produção da cultura dramática.
Não se pode imaginar o desenvolvimento de um teatro nacional sem o respaldo de intelectuais conhecedores da arte, capacitados à análise e discussão do fenómeno estético. Sob esse ponto de vista, a crítica tem função analítica e organizadora das diferentes correntes de pensamento que incidem na produção dramática. Isso não se altera com a mudança do calendário e permanecerá valendo no século que se inicia.
O que me parece importante discutir é o espaço da crítica nas novas conjunturas e em face das tecnologias que transformam radicalmente os meios de comunicação.Por tradição, temos a imagem do crítico ligada a um jornal, à coluna de um diário ou semanário, e sua função confunde-se em certa medida à do jornalista: informa o leitor sobre a qualidade do espectáculo. Isto é verdadeiro... ou melhor, é uma meia verdade. O jornalista ao redigir a notícia deve ser objectivo, ater-se ao facto e não interpreta-lo; deve ser tão imparcial quanto possível.
Já o crítico é também objectivo, mas interpreta o facto (no caso, a obra colocada em cena) e é apenas relativamente imparcial, já que a apreciação da obra cénica tem muito de subjectivo, representando antes de tudo um ponto de vista - o ponto de vista do crítico. Diferenças que separam nitidamente a função do crítico à do jornalista, embora nada impeça que uma pessoa exerça ambas as funções com muita competência.O problema dessa imagem do crítico é que o afasta do criador cénico para aproximá-lo do leitor do jornal.
Numa simplificação, apenas o leitor seria o interlocutor do crítico, dificilmente o artista. Isto leva à crença de que crítica desfavorável ao espectáculo determina o fracasso do mesmo; assim como crítica favorável engorda a plateia. Crença que, é sistematicamente negada pela realidade: muitos espetáculos francamente repudiados pela crítica tornam-se triunfos de bilheteira e outros, elogiados pela crítica, ficam com as salas vazias de espectadores.
Então a crítica é uma inutilidade? Certamente, como inútil é a própria arte. E quanto mais gratuita for, quanto menos estiver "a serviço" do que quer que seja, mais próxima estará de trazer grandes benefícios à sociedade.
Já ouvi vários críticos - e dos bons - colocarem-se como "espectadores privilegiados". Permito-me discordar deles. Na verdade, o bom crítico domina um instrumental teórico que pouco espectador possui, e tem o olho treinado para ver subtilezas, movimentos e gestos cénicos, conseguindo imediatamente relacioná-los à obra ou ao pensamento poético que os inspira ou que se pretende materializar cenicamente. Dessa relação é que nasce o ponto de vista crítico.
Assim, o crítico é um especialista e não um "espectador privilegiado".
Vê o espetáculo como um pensamento transformado em imagens, sons, movimentos, luzes, e discute esse pensamento. Sua interlocução com o leitor do diário é positiva. Não qualquer leitor, certamente, mas aquele que tem algum interesse pela arte. A leitura constante de boas críticas ajudará esse leitor a educar a sensibilidade, a desenvolver capacidade analítica, habilitando-se à perfeita fruição do produto estético - deixa de ser mero "consumidor".
Sendo pessoa capaz de ler e discutir o pensamento veiculado pela obra (ou o pensamento que é a obra), outro importante interlocutor do crítico é o próprio artista, o criador céênico. A relação entre esses personagens é sempre complicada, pois implica a imagem que cada um faz de si mesmo e do seu trabalho. Às vezes tal relação desanda em agressões.
Mas, sobra, inevitavelmente, a reflexão expressa na crítica que, de uma maneira ou de outra, oferece algum subsídio ao criador. E esse facto exprime, no contexto do teatro actual, novos campos e novos espaços onde a actuação do crítico está muito mais próxima à do criador, estabelecendo novos modos de diálogo.
Nesses novos espaços, ainda não suficientemente explorados nem resolvidos, surgem duas figuras que nem sempre são encarnadas por críticos, mas cujas funções estão absolutamente vinculadas ao exercício crítico: a do dramaturgo ou dramaturgista e a do produtor.
A primeira tem ligação orgânica com o trabalho criativo, na medida em que busca junto dos criadores cénicos estabelecer perspectivas para a interpretação da obra.
A segunda, faz ponte entre a criação estética e o público, buscando captar a dinâmica da produção teatral e organizando sua mostra em determinados locais.
Os periódicos, hoje, parecem ameaçados pela Internet. Mas seria um exagero estimar a "morte" da imprensa diária, como foi exagero estimar que o cinema mataria o teatro e, depois, que a televisão mataria o cinema.
Mais legítimo seria louvar o aparecimento de um novo meio para veicular idéias. Surgem na rede sites noticiosos, abrigando links de crítica teatral. Porém, quase sempre, esses sites reproduzem no novo meio linguagens e critérios da imprensa diária, confinando a reflexão crítica a planos secundários. A Internet, no entanto, é um meio generoso, amplo, democrático, e poderá vir a ser importante espaço à reflexão crítica, com sites dirigidos ao público interessado na arte, sem restrições nem condicionamentos editoriais.
Creio que a função da crítica teatral neste novo século continua essencialmente a mesma, porém dinamizada e difundida por novos espaços. Justamente esses novos espaços é que devem ser avaliados, otimizados, de modo que a crítica possa readquirir seu sentido didático, provocador e criativo.
A crítica teatral frente às novas tendências cénicas
Ao longo do século 20 a encenação foi adquirindo autonomia, separando-se da literatura, da qual tradicionalmente era entendida como subproduto.
As revoluções dos conceitos cénicos desde Antoine até Brecht, passando por Paul Fort, Gordon Craig, Stanislavsky, Meyerhold, Komisarjevsky, Artaud e tantos outros, abriram horizontes que foram exaustivamente explorados por criadores no mundo todo, depois da Segunda Guerra, incidindo em novos paradigmas, novas linguagens, conferindo à encenação peculiaridades que a tornam um tipo de expressão singular, único, provido de dinamismo próprio.
Sem dúvida o texto dramático continua sendo um dos fundamentos do teatro, mas deixou de ser o fundamento.
Por outro lado, encenadores geniais, que dominam códigos estabelecidos e os transgridem, revelam valores no texto dramático que o crítico e o ensaísta tradicionais não conseguiam vislumbrar.
A liberdade de desconstruir e reconstruir, marca da encenação contemporânea, possibilita a exploração desses valores numa viagem para dentro da obra, examinada e vivenciada na prática cénica e não apenas com o instrumental teórico do ensaísta. São procedimentos e códigos novos que desvendam horizontes insuspeitados em peças de Shakespeare, por exemplo.
E assim o teatro se reinventa a cada passo, exigindo do crítico novas posturas, novas maneiras de se relacionar com a obra e nova ética.
Não faz mais sentido a crítica que se prende ao texto como um náufrago a um pedaço de madeira, passando rapidamente sobre as questões da encenação.
E também não faz mais sentido o crítico que se mantém afastado do fazer teatral quotidiano, como se a relação directa com os criadores fosse conspurcar o seu trabalho.
Não faz mais sentido fechar-se numa interpretação teórica do original e não admitir que possa haver diferentes leituras da obra, considerando "um erro" qualquer interpretação diferente da sua.
O crítico contemporâneo tem que soltar as amarras, deixar-se conquistar pelo dinamismo do teatro, admitir a contradição como matéria-prima do pensamento dramático em sua materialização cénica.
Evidentemente o texto continua sendo um grande referencial da criação cénica, mas interessam igualmente os processos criativos, os meios pelos quais o artista procura actualizar os velhos textos e, com eles, desvendar novos horizontes, novo entendimento do ser humano, da condição humana.Mas o próprio processo pode, muitas vezes, implicar a dramaturgia, dispensando o texto formal ou convencional.
O crítico contemporâneo precisa aceitar os desafios desse teatro. Precisa dialogar com os criadores, informar-se dos processos. Só assim evitará o risco de confundir um dado novo com modismo e enaltecer modismos como inovações.
O polêmico Antunes Filho desabafou certa vez, frente a confusão de conceitos de alguns críticos em comentários sobre montagens suas: "Não se pode ver os novos paradigmas com o olhar velho". E essa é uma grande verdade.

O grotesco nos palcos da Praia

Um poderoso desmascarado e um louco que desmascara, algo nos estranha nesta premissa e mostra a relatividade do homem, a relatividade das relações sociais e humanas.
E é também de relativismo que nos fala, dum relativismo constrangedor, caótico, e desconfortável para quem procura um «assento confortável». È o relativismo do poder social, o relativismo do poder criativo, o relativismo do poder familiar, o relativismo do tempo.
Falamos concerteza da peça O Doido e a Morte, do português Raul Brandão, com encenação de João Branco, apresentada pelo grupo de teatro do Centro Cultural Português do Mindelo, nos palcos da cidade da Praia no último fim-de-semana.
O espectáculo trouxe à Praia as questões existenciais tão pouco presentes no panorama teatral desta ilha. Por momentos temos o privilégio de abandonar o engajamento tradicional tão comum por estas bandas para vermos perante os nossos olhos as questões de todos nós, homens e mulheres, nascidos a norte ou a sul.
Por duas noites a cidade da Praia teve o privilégio de questionar a vida, de questionar a morte, e sobretudo, de questionar a subjectividade destas duas faces do homem. E se a morte foi o motivo, o argumento para a criação dum universo de ficção na vida do Governador, foi ainda pelo trabalho ficcional de João Branco que pudemos ver tão eficazmente este desmontar do paradigma vida/morte.
João, como aliás é sabido, mais uma vez foi mestre na actualização do texto nas tábuas. O encenador respeitou o texto na integra do autor português, unicamente inseriu no inicio do espectáculo algumas deixas que remetem para um contextualizar espacial da cena e ainda um extracto dum texto alusivo à realidade teatral, que muito inteligentemente deixou em aberto a sua justificação, remetendo para quem vê, a sua actualização a Cabo Verde ou ainda a uma questão universal do fenómeno teatral.
De notar que JB usou na peça aquelas últimas palavras do texto, que Raul Brandão desejou, as tão fortes palavras que «ofendem a decência dos ouvidos das senhores», e que tão eficazmente rematam o drama.
O espectáculo conquistou o público desde o seu início com tão inusitado abrir da ficção.
Na hora marcada abrem-se as portas, o público entra e depara-se já com a cena instalada, não há mais lugar para fuga. Já é cúmplice.
Nos momentos a seguir vive-se teatro na sala do CCP, teatro na verdadeira e pura acepção do termo, vemos nitidamente os actores ao lado das personagens, vemos nitidamente o espaço e tempo de ficção ao lado do tempo real. E só conseguimos ver isso confortavelmente porque no palco representa-se, «faz-se de conta» duma maneira tão maravilhosa que não nos incomoda nada ver os actores no palco mesmo fora da ficção, aliás a dado momento eles são invisíveis para nós, já ninguém acredita que eles lá estão.
É isto que é o teatro, convencer o espectador deste faz-de-conta, torná-lo cúmplice. A encenação fazendo jus a tão simbólica e grotesca dramaturgia, apresenta-nos uma estética bastante grotesca e algo caricaturada.O cenário simples, algo estranho (encontramos uma cenografia do mobiliário muito atemporal ao lado de alguns adereços bem marcantes temporalmente) é por si mesmo de um estranhamento interessante pelo grotesco e híbrido que apresenta, obviamente eficaz. Neste jogo combinatório situam-se também os figurinos. Mas é importante ressalvar que nestas duas questões algo salta à vista do espectador: o carácter sóbrio e convencional - nada está em exagero e tudo é obviamente de ficção. O uso da máscara vem assim compor o conjunto fechando com chave de ouro a teatralidade plástica que se procura nesta peça e sublinhando o conteúdo grotesco do tema. Foi notório o trabalho prévio sobre a técnica da máscara na performance dos actores não deixando no entanto de ser notado algumas dificuldades a nível da visibilidade e que por vezes chamava à atenção do espectador atento. Mas é interessante concluir que no meio de tanto absurdo, nem isso foi incómodo na peça. Assim como a porta do escritório do governador que por várias vezes os actores esqueciam da sua existência.
Percebe-se perfeitamente que este espectáculo teve um período considerável de ensaios, de produção e dedicação, pelo trabalho profissional ao nível da performance dos actores de marcante teatralidade (segundo o encenador, a teatralidade é o pilar desta encenação), pela precisão com que foram criadas e operadas a luz e a sonoplastia, assim como a necessária e interessante realização dum texto programático, que trouxe até ao público a consciência de produto maduro, acabado.
A sala estava composta de público em ambos os dias de apresentação, mas estranhamente sentiu-se a ausência dos fazedores de teatro destas bandas, sentiu-se a ausência de reflexão tão interessante naquele tempo que procede o espectáculo, no tempo das conversas de átrio.
Este espectáculo estava enquadrado na actividade Março - Mês do Teatro, que para além de ser uma simples agenda de espectáculos, deverá ser concerteza um espaço e um tempo de cruzamento de estéticas, de experiências, tão necessárias para o enriquecimento do nosso teatro.
O Março - Mês de Teatro continua no próximo dia 23 com a apresentação da peça O Último Desejo, pelo grupo Cena Aberta, pelas 19h no Centro Cultural Português da Praia.

Cena Aberta apresenta O último desejo na Praia

Será o amor um sentimento que vai para além da morte?
Levará a força do amor, a uma inevitável entrega ao destino final?
Foi com estas ideias e com palavras doces e profundas que o grupo de teatro Cena Aberta se apresentou nos últimos dias 23 e 24 no palco do Centro Cultural Português da Praia, com a peça O Último Desejo, texto e encenação de Wilton Alexandre, inserido na actividade Março Mês de Teatro.
Uma história dum amor perdido no meio da hipocrisia e da inveja, um amor perdido algures nos terrenos áridos do poder. Foi o amor na Praia, vindo de tempos idos da nossa história.
Com um ano de existência e na sua terceira produção, o grupo é dirigido por Wilton, que assegura o texto dramático e o texto teatral, ou seja, na sua solidão passa para as palavras as suas personagens e suas histórias e num momento posterior partilha com o seu grupo estas viagens dramáticas para com eles oferecer ao espectador uma obra cénica.
O Cena Aberta possui já um público cativo, a ver pela lotação da sala em ambos os dias de apresentação, e cria já um universo de expectativa que em tudo favorecerá a sua exigência e criação. Porque é importante que na Praia se comece a criar públicos, se comece a fidelizar espectadores, pois são eles a terceira ponta do triângulo cénico e parte fundamental no processo criativo. Do repertório deste grupo faz ainda parte uma produção infantil, que é importante sublinhar, pois é mais do que essencial que despertemos para a fundamental sensibilização teatral na infância.
A peça que a Praia teve oportunidade de ver, O Último Desejo, é uma peça sobre um tema universal, o amor, foi escrita já há alguns tempos, quando Wilton chegou em Cabo Verde, possui nas suas entrelinhas um horizonte referencial do seu país de origem, Brasil, mas foi eficazmente actualizado para uma realidade cabo-verdiana, sendo que pela sua temática universal, sem grandes dificuldades esse trabalho foi possível.
O encenador no entanto defendeu que «não quero pegar na cultura de Cabo Verde, porque é muito íntima, e não possuo essa intimidade com ela, logo, por respeito a isso, pego sim na história, nos factos históricos». E assim vemos na peça, as questões do português vs. crioulo e o lugar que ambos ocupam, respectivamente a língua do senhor poderoso vs. língua da criadagem; a questão da proibição da Tabanca; etc.; sendo que estes factos históricos são, sem dúvida alguma, a base cultural de um povo.
Não existe cultura alheada da história, e Wilton conseguiu eficazmente, sem compromisso de «intimidade» abordar as questões culturais. Tudo isto foi possível graças ao trabalho exaustivo de pesquisa levada a cabo por ele, num trabalho positivamente obsessivo.
Se a dramaturgia é assumidamente um elemento maduro na peça, o mesmo já não se reflecte no trabalho de interpretação, facto que tem sido muito constante na maioria das peças que se apresentaram neste Março - Mês de Teatro. Os actores não conseguiram eficazmente dar o pulo na interpretação das suas personagens e estóreas. Encontramos nesta peça um elenco muito frágil, com uma nítida falta de entrega e de obsessão criativa. E vemos desfilar no palco um mundo de clichés desinteressantes, de narradores de si próprios, debitando o texto e as marcações, sem que se encontre contracena, desafio e surpresa. Se temos como realidade a falta de formação a nível do trabalho do actor, facto sem dúvida com grande peso, não podemos no entanto permitir a ausência de energia, de desfrute, que nada tem a ver com técnica de interpretação.
Durante a peça ficamos com a sensação de «clima morno», de ficarmos a meio caminho para a personagem e para a cena, mesmo havendo alguns momentos de energia e entrega de actor.
Penso que estamos num ponto do teatro em Cabo Verde, que temos que exigir, temos que pular aquele «fazer teatro amador», com o que isso possa ter de negativo. Se chamamos o espectador até nós, temos que lhe dar tudo a que ele tem direito, e principalmente temos que gozar o teatro, que nos surpreender e nos enriquecer.
Não há nada de mais maravilhoso, do que ter a possibilidade de sermos outra pessoa por uma noite, e temos que agarrar isso com unhas e dentes, para que depois dos aplausos, sintamos a satisfação de missão cumprida.
De sublinhar ainda a subtileza e harmonia da música de Djoy Amado, que instalou na sala o clima de satisfação e beleza.
Encontramos ao longo da peça, e apesar das dificuldades de interpretação, uma fluidez e uma cumplicidade do público, um entendimento perfeito das dores do amor, que no poema final (belo, mas questionável a sua utilidade na dramaturgia) estão estampadas. No entanto, por vários momentos caiu-se em alguma redundância na peça, e em opções que em nada contribuíram para eficácia da peça (como por exemplo a presença do espectro-criança). O público é inteligente, não esqueçamos isso, e sempre a arte fica mais rica quando em vez de explicitar, sugere.
O público aplaudiu, satisfeito.
Cena Aberta, que vem experimentando várias linguagens e estilos teatrais, tem já em carteira a peça Quando as máquinas param, de Plínio Marcos, a estrear em breve. O público ficará à espera da nova viagem que o grupo permitirá e Cabo Verde verá assim mais uma vez enriquecido o seu percurso cénico.
Hoje sexta-feira, pelas 20.30 no Centro Cultural Português da Praia assiste-se à peça 24 Horas na vida de um morto pelos alunos do Curso de Teatro do CCP da Praia e ás 21.30 no Auditório Nacional pode-se ver a peça Profecia de um crioulo pelo grupo Fladu Fla.E assim fechamos o Março - Mês do Teatro, esperando que hajam agora Abril, Maio…e outros tempos para o teatro.

Maria Badia no CCP Praia

Com encenação e direcção musical de Princezito, Célia Varela apresentou-nos a sua mulher badia no passado dia 15 de Março no palco do CCP da Praia, enquadrado na programação do Março - Mês do teatro.
É o nascimento de mais um autor teatral no tecido praiense, que apesar da sua inexperiência nos trilhos cénicos, apresenta momentos e ideias interessantes.
Com esta peça Princezito procurou trazer as vivências profundas do quotidiano, numa abordagem sem auto-censura, ou seja, trazer o quotidiano tal como ele é vivido com as coisas mais e menos poéticas. È a mulher a as agruras diárias da sua dura vida que é explanada neste pedaço de arte dramática.
A peça apresenta-nos três momentos distintos da vida desta mulher: os sonhos sedutores e eróticos; o trabalho nas sementeiras e a venda no mercado do peixe de todos os dias.Num primeiro momento, em que o público é levado a mergulhar numa atmosfera de sonho e de desejo, através do uso da sombra chinesa, o autor torna claro o carácter não-fabricado da sedução badia, uma sensualidade que não se quer escondida. A acompanhar este momento temos algo inovador nos palcos da Praia, o suporte multimédia ao lado da actriz, num complemento interessante e eficaz, sendo que um segundo momento do uso da imagem, pareceu um pouco insípido e injustificável, ou pelo menos não tão eficaz.Nos dois momentos posteriores, o da sementeira e da venda do peixe transportaram-nos já para um naturalismo já não tão interessante, onde a passagem da história para fora do palco não era uma madura opção dramatúrgica mas um abandonar da ficção que por si já estava ausente e daí este incómodo dum sair sem nunca ter entrado.
Célia Varela foi aluna do Curso de Iniciação Teatral realizado no Centro Cultural Português no último ano, e já não é a primeira viagem nos palcos, o que nos levou a esperar mais desta jovem actriz.
Esta peça teve a particularidade de ter sido ensaiada somente durante quinze horas aproximadamente o que talvez justifique a frágil representação de Célia (mais o facto de ser um monólogo, com o que isso tem de exigente), com francas dificuldades de projecção de voz, de consciência do espaço e da luz, e uma ausência de entrega á Maria, tendo mesmo Princezito assumido este espectáculo como «uma entrada no mundo do teatro, um ensaio, apresentado mesmo antes de amadurecer». Quase sempre estávamos perante a Célia Badia e não a Maria Badia. No entanto de frisar, os preciosos momentos de vendedora que apregoa o seu peixe.
Princezito, com cinco comédias já escritas (duas são monólogos) assume-se mais como um escritor de peças do que propriamente um encenador, o que talvez justifique as inocentes e pouco criativas opções de encenação, de salientar no entanto o inovador uso do suporte multimédia assim como a inserção da contracena com um personagem imaginado, o que eficazmente levou o público a render-se a tão propositado momento cómico.
Por momentos, questiona-se se estamos perante um acontecimento performativo ou um espectáculo de teatro. Raramente durante o espectáculo se cria a ficção, se cria personagem. Assistimos a quadros situacionais com o espectador no mesmo tempo e no mesmo espaço que a Maria Badia.
Tendo no entanto sido claro que na versão portuguesa da peça isso foi mais evidente, o que nos leva a retomar a tão presente questão da língua e a identidade. O crioulo foi sem dúvida um melhor suporte na criação, enquanto que o português provocou uma inibição no trabalho de actriz.
Neste espectáculo e como vem sendo usual nestas andanças, as frágeis condições de produção, a carência ao nível técnico foram motivos evidentes de penalização do espectáculo, mas começamos a entender por estas terras que o trabalho tem sempre que ser obsessivo para poder dar frutos e que em terrenos áridos, com esforço e dedicação pode-se fazer nascer uma flor.
Esta peça está aí para andar e há já algumas possibilidades de ser apresentada noutros lugares em Santiago, o que nos dá o conforto de que concerteza será amadurecida.Março – Mês do Teatro continua hoje com a apresentação da peça vinda do Mindelo, O Doido e a Morte, com o Grupo do Centro Cultural Português e encenação de João Branco.

Fladu Fla apresenta-nos a Profecia do Crioulo

No passado dia 3 de Março, a cidade da Praia pode assistir a Profecia do Crioulo, oitava produção do grupo de teatro Fladu Fla. Este grupo com 4 anos de existência sedeado na Cidade da Praia trouxe-nos até nós as questões da identidade cabo-verdiana e relevou para a Língua o papel de abrir essa discussão.
Nas palavras do encenador, Sabino Baessa, a ideia deste espectáculo surgiu no momento em que o Ministro da Cultura de Cabo Verde se encontrava com linguistas americanos para discutir se o crioulo deveria ao não ser língua oficial. A partir daqui foi um deambular de ideias e de escritas de forma a que a dramaturgia se responsabilizasse por transmitir a ideia clara de que o crioulo é pilar da identidade. Assim se nos apresenta esta peça.
Sabino procura com a peça sensibilizar a comunidade para o processo de oficialização do crioulo, sem no entanto, e isso é visível no uso das palavras de Amílcar Cabral usadas na peça, fechar as fronteiras linguísticas de Cabo Verde. Estamos perante a premissa da identidade necessariamente universal que encontramos anteriormente em discursos de Francisco Fragoso, homem de teatro, e que sem ser por acaso, participou nesta criação teatral. Francisco Fragoso, assim como Mano Preto, ainda um psicólogo, um linguista, um músico, um teólogo e ainda um jornalista são o corpo do Concelho Superior da Associação Fladu Fla, o que nos leva a crer que já não falamos em teatro efémero que tanto domina os palcos praienses.
Há toda uma organização, com um projecto teatral concreto.
Mas se podemos elogiar este esquema organizacional, não podemos no entanto ressalvar que as condições de produção, como seja o tempo de ensaios (cerca de três horas por semana, durante um a dois meses), os parcos meios de divulgação, assim como a indisponibilidade devida do espaço de apresentação do espectáculo, deixa o espectáculo um pouco frágil a nível performativo. O espaço amplo que é o palco do Auditório Nacional, ao qual os actores só tiveram acesso no próprio dia do espectáculo criou-lhes várias dificuldades, tanto ao nível da projecção de voz voz, como do movimento. Em dados momentos do espectáculo sentia-se que algo se perdia naquele espaço imenso, o espaço que se apresentava perante os nossos olhos raramente coincidia com o espaço de acção.
Por outro lado, e se nos encontramos num momento em que as grandes narrativas morreram, a opção de encenação deste espectáculo favorece a apresentação de quadros em detrimento de histórias fluidas, aconteceu que o espectador várias vezes perdeu o fio à meada, seja pelas diferentes estéticas que se cruzaram (temos quadros que nitidamente apostam na convenção teatral e quadros absolutamente naturalistas), seja ainda pela pouco exigente dramaturgia. Ainda devido às questões técnicas que provocaram demoradas mudanças de cena, várias vezes a ficção caiu.
A peça começou com uma promessa de um teatro experimental, do uso do símbolo do pelourinho, do uso perfeito dos figurinos e do movimento (perfeita performance dos actores, com especial relevo para o escravo fugitivo) criando uma atmosfera que deambulava entre o teatro físico e o teatro pobre, abandonando no entanto essa promessa com o decorrer da peça, transferindo o espectador para a tão apresentada estética popular e naturalista que a Praia já esgotou.
O público riu, identificou-se, mas sentiu-se na sala um certo desconforto de quem tem que viajar sem perder o rumo. Se com Sabino Baessa e Francisco Fragoso a temática amadureceu, coube a Mano Preto um dos momentos altos da peça, com a introdução dos tão apreciados ritmos e movimentos do Raiz de Polon, em que pudemos por momentos abandonar a viagem e simplesmente usufruir a paragem. E na sala respirou-se.
De salientar ainda a brilhante contracena de Nancy e Isa, respectivamente as nossas crioulas Samira e Sara que mostraram no uso perfeito da riqueza oral de Cabo Verde e no traço interessantíssimo dos seus movimentos o verdadeiro teatro, a arte plena da representação.
Com todas as condicionantes citadas, o grupo aí está para crescer e para surpreender. Para quem não viu, o grupo volta a apresentar-se ainda este mês no dia 31, tendo ainda previsto Tribunal de Sentimento, um novo espectáculo a estrear em breve.
Percebe-se que a Praia começa a viver outros tempos teatrais, ao lado da madura actividade Março - Mês de Teatro, organizado pelo Centro Cultural Português e Associação Mindelact, começamos a ver crescer independentes produções de palco.

Coçar onde é preciso ou Curiosidades sobre Portugal

Assim se apelidou o espectáculo que a cidade da Praia teve o prazer de ver no passado dia 8 pelas mãos (ou melhor, pela arte) do conceituado actor português José Pedro Gomes no palco do Centro Cultural Português.
No público predominava a presença de portugueses, talvez mais por questões logísticas e de reconhecimento do actor, mas os cabo-verdianos que aí se encontravam respiraram ao mesmo ritmo, e reconheceram-se nas pequenas estóreas que foram apresentadas.
Enquadrado na actividade Março – Mês do Teatro levada a cabo pelo Centro Cultural Português/ Instituto Camões, o espectáculo predominantemente baseado em factos da realidade portuguesa, consegui no entanto apresentar um modo diferente de fazer teatro daquele a que o cabo-verdiano está habituado. One man show concerteza transmite a mensagem aos nossos fazedores de teatro que o actor, o seu corpo, a sua voz, a sua magia é o fundamental nesta arte nobre. Mesmo se socorrendo várias vezes de adereços, ficamos com a certeza que mesmo sem eles o espectáculo teria a mesma magia.
Consciencializemos os nossos agentes teatrais, que as grandes cenografias, os grandes figurinos, as grandes dramaturgias só por si nada fazem. O teatro é a actor e a sua energia.
Apesar de esta peça se basear em grande parte na realidade politica, social e económica de Portugal, mostrou no entanto as formas de falar nas coisas, e de que modo podemos tratar um assunto por mais sério que seja dum modo descontraído e sem tabus. Chega de levar tudo a sério, por vezes uma gargalhada é mais interventiva que uma palavra de ordem. Passando pela crítica aos Serviços Públicos, ao governo português e suas politicas, quase sempre o cabo-verdiano se reconheceu no discurso. Foi no entanto claro maior reacção efusiva quando os temas eram mais universais, como por exemplo, as questões do sexo, do futebol, etc. No inicio da peça o actor através de algumas referências concretas a Cabo Verde, conseguiu arrancar umas tantas gargalhadas que foram ecoando ao longo do espectáculo. Se, e como disse o actor, em Portugal as reacções foram mais efusivas, aqui na Praia o espectáculo foi bem recebido e bem digerido, deixando no rosto do espectador um sorriso de cumplicidade com as estórias e com o actor. Tivemos na sala não um riso popular e fácil que muitas vezes nos é dado, mas sim um riso inteligente e que permanecerá na memória do público.È essencial que os palcos de Cabo Verde sejam o veículo para o encontro com outras inteligências, com outras estéticas, para que o que aqui se faz cresça a bom tempo.
E o Centro Cultural Português tem sido um meio privilegiado para este crescimento.O espectáculo segue agora para se apresentar na cidade do Mindelo no próximo dia 10, sexta-feira.