quinta-feira, dezembro 20, 2007

O Amoroso em Três Partes – Burbur



No passado dia 3 de Dezembro estreou na cidade do Porto a terceira produção da Associação teatral Burbur.
A peça é composta por 3 quadros e uma morna cabo-verdiana. Estes quadros correspondem a três textos distintos: um cabo-verdiano - «De quem são os teus olhos» de Gabriel Mariano, um português - «O Iconoclasta» de Fernando Amado e um brasileiro - «Olhos negros» de Paulinho Assunção. Por esta selecção se percebe que a lusofonia é a pauta pela qual se constrói este espectáculo, desde a dramaturgia até aos próprios intervenientes de várias nacionalidades lusófonas.
Para dirigir este espectáculo foram convidados três encenadores, respectivamente Kwame Kondé, cabo-verdiano; Rogério de Carvalho, angolano e Rui Duarte, português e director artístico do grupo.
Esta encenação faz parte dum projecto no qual culminará ainda um registo videográfico, ou pelas palavras dos seus intervenientes, uma «adaptação da peça em três curtas-metragens.»
Não cabe neste espaço reagir/reflectir ao projecto na sua totalidade mas um breve tecer de considerações em relação ao espectáculo apresentado.
O «amoroso», ou os pulsares do amor na figura masculina são o fio tecedor deste espectáculo. Para além do conteúdo temático encontramos uma similar forma textual nas três proposta, textos algo fragmentários, breves. Um poema dramático, um texto especificamente dramático e um conto. Três formas textuais que servem o mesmo propósito, falar do amor no palco.
O espectáculo inicia-se com uma morna cabo-verdiana - «Mudjer Bonita» de Eugénio Tavares, que apesar de bem executada e de nos transportar para o clima quente e sedutor de Cabo Verde, apresenta-se como algo desligado do espectáculo na sua totalidade, servindo no entanto para contextualizar o primeiro quadro de Kwame Kondé. Levanta-se-me a pergunta: «Com que propósito esta morna?».
Em relação ao quadro de Kwame Kondé, a encenação de «De quem são os teus olhos» mostra-se algo frágil, deixando à performance dos actores todos os créditos. Flávio Hamiltom e Odete Mosso, já deram provas da sua exigente actuação e dedicação em trabalhos outros, mas neste quadro sente-se alguma fragilidade na acção e não ousam surpreender o espectador, resumindo a sua acção a um jogo «dejá-vu» de jovens enamorados. O texto de Mariano vale por si, mas poderia ter tido a mais valia dum bom traçado cénico. Ficou um pouco aquém do que estes actores nos habituaram.
O segundo quadro, encenação de Rogério de Carvalho apresenta-se como o mais maduro teatralmente, com um excelente trabalho de direcção de actores, assim como o desempenho destes. Este quadro revelou-nos um texto bastante interessante, e basicamente desconhecido do público. Prendeu o espectador ao desenrolar desta aventura em busca do «amor iconoclástico». Neste quadro como nos outros dois, temos um palco vazio, onde os actores apenas se servem de alguma peças de mobiliário imprescindíveis à acção. Apesar de o texto ser bastante realista, a simplicidade com que foi trabalhado em palco acabou por concentrar o espectador nas contracenas, motor por excelência deste segundo momento do espectáculo.
O terceiro quadro, a partir do conto de Paulinho Assunção, encenado por Rui Duarte foi o quadro onde mais se espelhou a estética a que os Burbur nos habituou nos trabalhos anteriores. È um quadro onde a palavra é o simples pretexto para a acção, a acção ultrapassa-a, e vemos uma proposta de encenação bastante interessante. Mas no entanto pelo carácter fugaz e breve deste quadro, no seu término o público é surpreendido pelo fim anunciado e como que se sente na plateia um «saber a pouco».
Durante cerca de uma hora o espectador viajou por três estéticas bastante distintas, três propostas que se ligam, e repito, pela sua temática e seu carácter de texto curto, com um bom ritmo e sem lugar ao aborrecimento.
O local escolhido para a apresentação da peça, o Auditório do Museu Soares dos Reis, é um espaço pouco usado para este tipo de actividades, o que daí se deduz, é um espaço que ainda não produziu público. Logo, o público presente nestes cinco dias de apresentação será, sem dúvida, um público dos Burbur, criando já esta grupo um certo universo de espectactiva no seio da cultura teatral portuense.
Ficamos a aguardar a sua nova proposta.

sábado, outubro 20, 2007

A propósito de «Natal na Praça» pelos Salesianos de S. Vicente: nota crítica de Kwame Kondé

No dia 23 de Julho de 1978 tivemos e ensejo e a oportunidade de assistir à peça «Natal na Praça» pelo grupo dos jovens dos Salesianos integrada no festival teatral programado adentro das seguintes rubricas: «Teatro policial», «Teatro cómico», «Teatro religioso», «Teatro musical».
Esta iniciativa, louvável a todos os títulos a despeito dos reparos que merece e que teceremos no decorrer deste nosso trabalho, vem uma vez mais pôr o dedo na ferida desta questão tão pertinente, que é a da estruturação e da definição consequente dos caminhos e perspectivas a que deve trilhar e obedecer a actividade cultural entre nós. Tarefa ingente esta, é certo, mas que urge ser encarada de frente e numa visão séria e clarividente.
(…)
Improvisando um palco, de medidas tão exíguas, sem atingir, quiçá, as dimensões minímas para ser considerado normal, e, no concernente ao décor, luminotecnia e sonoplastia seguindo as vias e peugadas dum teatro pobre, por isso reduzidos ao estritamente necessário e com um grupo de jovens amadores lançaram-se nesta labuta ou luta até chegar ao espectáculo e mesmo a um mini-festival teatral. No entretanto, reiteramos, dada a falta de estrutura integrante e de inserção, esta iniciativa não pôde conseguir os grandes objectivos que esta exige e a própria cultura caboverdiana necessita e, o que é mais grave pode vir mesmo a desaparecer ou então descambar na mediocridade, para mal dos nossos pecados.
A peça, «Natal na Praça», de autor francês, em versão brasileira, de fundo bíblico, pois se trata do nascimento de Jesus Cristo em Belém. Estruturalmente bem concebida foi pena que o grupo não tenha conseguido, por preparação deficiente, transmitir a dimensão teatral exacta e consequentemente os pressupostos e fundamentos de que a própria é exuberantemente rica e fértil.
(…)
Peça de participação, visando destruir a barreira entre actor e espectador, procurando protagonizar este, preocupação, aliás constante em toda ela, que o grupo, talvez por inexperiência ou falta de preparação não soube imprimir ou dar o devido jus e relevo.
Na realidade, a encenação, que se pode designar de razoável, se tivermos em conta a condição de amadores do grupo, a exiguidade do palco e demais carências poderia ter atingido uma dimensão elevada caso ao grupo houvesse sido ministrado um mínimo de técnica teatral, com eficiência, nomeadamente no domínio da relação dialéctica actor-personagem, da articulação das palavras, colocação e utilização consequente da voz, memorização do texto, jogo teatral, mímica básica, etc. etc., o que, de facto, não houve, pois se contou demasiado, mas não virtuosamente, com a capacidade histriónica dos componentes, caboverdianos, como é óbvio. Por outro lado, servindo-se de uma marcação linear sem contar com os riscos da mesma e ainda por cima num palco cuja exiguidade, com efeito, não dava para mais, houve momentos fracos, destoando aflitivamente com outros assaz positivos e, por sinal, dignos de encómios.
Esta iniciativa, louvável nas suas intenções, e infelizmente a única em S. Vicente, onde, porém, o ambiente reúne o minímo de base e condições para actividades deste género. Eis porque, urge incentivar os jovens, criando estruturas integrantes e de inserção a fim de que o exemplo dos Salesianos possa encontrar terreno preparado e se vingar fecundamente através de frutos que aproveitem a todos.
A personalidade dum povo se mede, ou melhor, é o retrato fiel da sua força cultural e esta se revela, sem dúvida, pelas realizações positivas que este povo é capaz de levar a cabo, pondo-as em prática, estética e socialmente eficaz, como prova relevante do seu poder de criação dialecticamente aberta e válida inerente à própria condição humana.
(Artigo publicado no número do jornal «Voz di Povo» de 5 de Agosto de 1978)

sexta-feira, outubro 19, 2007

Critica em Cabo Verde II

Uma vez que não me encontro mais em Cabo Verde não poderei continuar a minha actividade de critica teatral no terreno, mas estarei atenta a todos os espectáculos que acontecem aqui em Portugal que se ligam a Cabo Verde (como sendo o trabalho dos Burbur no Porto por exemplo) para escrever.
Aproveitarei ainda este espaço para colocar algumas criticas de teatro que foram feitas ao longo dos tempos, por várias pesooas em Cabo Verde e assim enriquecer este blog.
Porque é para mim essencial reflectir sobre a Critica Teatral feita em Cabo Verde.

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Quando as máquinas param - Cena Aberta


Após longos meses de silêncio teatral, a Praia teve a oportunidade de assistir á nova produção do Cena Aberta – Companhia de Teatro, com a peça «Quando as máquinas param» do dramaturgo brasileiro Plínio Marcos, numa encenação de Wilton Alexandre.
Uma peça que retrata o drama comum e incógnito dum casal onde a insustentabilidade financeira leva á insustentabilidade de afectos.
O público durante cerca de hora e meia foi testemunha do acto heróico de quem não tem emprego, não tem comida e mesmo assim luta por manter o equilíbrio emocional.
Drama comum, presente na memória de todos nós, esta peça sublima a dor e a luta de quem inequivocamente agarra os valores possíveis: do futebol e de histórias fáceis com final feliz das comuns telenovelas que de algum modo nos contentam.
Numa encenação naturalista, os personagens da vida banal se apresentam como heróis desta batalha de vida, é o herói da modernidade em substituição do herói clássico. Muito interessante esta opção, apresentando no palco praiense uma nova estética teatral, despojada de grandes elencos e grandes cenografias e colocando a tónica no trabalho de actor.
A peça leva a palco dois actores formados pelo Curso de Teatro do Centro Cultural Português da Praia, Valdir Brito e Dulce Sequeira, num trabalho bastante exigente ao nível interpretativo. Sentimos alguma fragilidade no incorporar do texto remetendo por vezes para a simples força das palavras de Plínio, questão que poderá estar relacionada com o exíguo tempo de ensaios (segundo o encenador o tempo necessário foi reduzido a metade apresentando algumas dificuldades no processo).
Mas no entanto, apesar de alguns momentos pontuais menos interessantes, a peça fluiu e agarrou o espectador. Foi nítida a opção clara na encenação de fechar a peça, ou seja, não foi dado ao espectador uma obra aberta a qual ele pudesse completar com seus múltiplos sentidos, mas sim a evidência do que se queria transmitir, reforçado através do trabalho da dançarina Bety Fernandes e através da própria música que guiou o público para o abismo de afectos propositado.
A cenografia, apesar de apresentar a ideia inovadora do uso de material reciclado, ficou um pouco aquém do esperado com a inclusão de alguns materiais (ex. banco de ferro, etc..) perdendo a sua unidade estética.
A peça carece de mais apresentações, para conquistar a maturidade interessante, mas sem dúvida conquistou o público que no final deixou cair uma lágrima, cumprindo assim a sua função catártica.
Cena Aberta é já um grupo consolidado na Praia e promete já uma nova criação, desta vez um texto do próprio encenador - «O Jogo».

sábado, novembro 11, 2006

Mindelact – um paradigma cénico

Como que num ritual, em Setembro, regressou o Mindelact – Festival Internacional de Teatro à pacata cidade do Mindelo. E tudo se transforma, o tempo é outro, os espaços ganham magia e fazendo jus ao «mito do eterno retorno» teatral, a magia cruza-se com as gentes. Na sua décima segunda edição, este festival confirma já o seu lugar cimeiro nas artes cénicas de Cabo Verde e é referência já consumada das experiências teatrais africanas. Apesar das parcas condições de produção teatral vivida no país, este projecto é símbolo ímpar de organização e eficácia.
Este ano o festival começou logo com a amputação dos recursos financeiros, mas que apesar de tudo não acinzentou esta festa, devido ao espírito da equipa de produção, que teimosamente se esforça por gerir este acontecimento sem se deixar cair no desânimo. Vem provar que já nada fará demolir este festival, já é um acontecimento que faz parte da vida dos cabo-verdianos. E assim aconteceu!
A programação do festival, como aconteceu nos anos anteriores prezou pela variedade, sendo que ao nível da qualidade sentiu-se alguma expectativa frustrada. Alguns grupos foram presença repetida, o que pesou um pouco na avaliação por parte do público, que a cada ano que passa está mais exigente, como se espera. O que vem por si demonstrar que o festival cria já um universo de expectativa, faz já parte do projecto teatral desta nação. E nos pós-espectáculos vive-se informalmente momentos fantásticos de reflexão colectiva sobre o fazer teatral.
Vindos de Portugal, Brasil, Canárias, Espanha, Angola e das ilhas, os grupos convivem lado a lado, trocando experiências tanto teatrais como pessoais. Mas apesar deste saudável intercâmbio ainda se sente alguma timidez por parte dos grupos nacionais, que teimam em se manter um pouco à parte desta troca, com excepção dos grupos de S. Vicente, que por questões práticas quase todos têm elementos na organização o que facilita o convívio. Apesar de algumas situações menos lúcidas acontecidas no pré-festival com o grupo Solaris, o certo é que a energia que pairava no festival fez esquecer estes pequenos quiproquos e aí os tivemos, os elementos do Solaris a construírem eles também esta festa. O que demonstra o poder do Mindelact. O espírito de Dionisios esteve sempre bem presente entre o palco principal, o pátio e a rua.
E este espírito dionisíaco foi vivido em pleno no quarto dia do festival. Completamente off off, os grupos se cruzaram no bar do festival e entre palavras e músicas sente-se um verdadeiro ritual orgiástico de partilha de mundos e experiências. Por volta da meia-noite no Centro Cultural do Mindelo, cantou-se o fado, a morna, o flamengo andaluz e palavras cruzadas de outros mundos, num perfeito improviso de festa e assim se sentiu a verdadeira consciência de festival, de mundos que se cruzam, não só mundo teatrais mas experiências pessoais ricas de emoção e risos. E o brilho desta noite teve eco nos dias seguintes, ecos de felicidade, de cumplicidade. Pois, como mesmo salienta o seu director, este festival é batalha ganha, mais que não seja, pelo sentido de partilha, de amizade e criatividade vivido entre os grupos participantes.
Mas sente-se que as questões de qualidade têm peso fundamental na apreciação do festival, e o público já não é de conquista fácil, já não se deixa deslumbrar pela única questão de concretização de um festival, é exigente, o que me leva a vislumbrar que o Mindelact é um festival que tem responsabilidades não só ao nível do intercâmbio teatral como da criação de públicos. E esta questão esteve bem presente nos bastidores do evento, quando se questionava que tipo de público é este o do festival, se é um público que vem ao teatro pela simples motivação lúdica, ou se é um público reflexivo, que questiona a vida depois da cortina fechar. Pela reacção do público em peças mais contemporâneas, onde já não é o riso que toma parte, mas sim o silêncio cúmplice, facilmente concluo que o paradigma de recepção é ele mesmo já amplo e rico. Certamente observamos fortes aplausos em todos os finais de espectáculo, característica peculiar do público cabo-verdiano, mas a respiração do público no decorrer da peça é termómetro confiável de teorias de recepção. Longe vai o tempo em que o teatro era somente lúdico, onde se ia ao teatro para «passar um bom bocado», com o que isso tem de válido obviamente. Hoje, em pleno festival Mindelact sente-se a inteligência do público cabo-verdiano, o que provoca uma reacção muito positiva no próprio fazer teatral. As consequências desta exigência são a óbvia aprimoração qualitativa dos projectos cénicos. E neste ponto o festival teve grande responsabilidade, pois possibilitou o alargar dos referenciais trazendo estéticas outras até Cabo Verde e criando um público exigente, possível pelo próprio carácter dum festival.
Se nesta minha reflexão salientei o facto do espírito de festa que se viveu no festival, as boas trocas energéticas e artísticas entre os agentes teatrais nacionais e internacionais, o mais importante neste momento é sublinhar a força deste evento na criação dos paradigmas referencias, a eficácia do Mindelact na construção de bases e conhecimentos necessários aos fazedores de teatro, diminuindo o fosso com o paradigma universal, acabando com a desinteressante basofaria nacional, criando um espaço critico e de crescimento artístico.

quinta-feira, outubro 05, 2006

Mindelact 2006 - Off de Sto Antão, S. Vicente e Santiago





Ainda na qualidade de Off’s, saliento estas três peças pela sua singularidade. A primeira, À Deriva, apresentada pelo grupo de Sto. Antão, trouxe para o espaço do Off a experiência realizada por duas actrizes italianas com jovens da ilha, tendo por base a técnica de clown. Bastante interessante esta proposta, com momentos dignamente teatrais, onde vemos expressões, silêncios, movimentos que fazem parte dum qualquer universo de «faz-de-conta» criado por este colectivo. São jovens os actores, inexperientes até, mas deram-nos uma entrega á cena, digna de ser aplaudida. E no pátio a plateia andou á deriva com estes jovens. Bravo!!!
Outro espectáculo que quero salientar aqui é o Mangatchada, exercício final do XII Curso de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo, e que foi a peça que melhor correspondeu ao que se espera dum Off. Uma peça curta, mas bem limada. Com uma encenação bastante interessante, sonoplastia e figurinos muito criativos esta peça e demonstrou um nível de qualidade que foi excepção nos Offs. Ao nível da interpretação, sentiu-se alguma fragilidade, as actrizes apesar de apresentarem um trabalho refinado de movimento de cena, não tiveram a entrega que se esperava e ficou tudo muito marcado.
O terceiro espectáculo que faz parte deste rol por mim seleccionado é a peça Maria Badia, do Grupo Finka Pé da cidade da Praia – Santiago. Esta peça já tinha sido apresentada na Praia aquando do Março- Mês de teatro, mas foi uma surpresa a sua apresentação no Mindelact. A peça que não mais se resume do que à apresentação dum personagem, uma mulher oriunda de Santiago e suas caracteísticas peculiares de mulher badia, teve uma recepção bastante positiva nas gentes do barlavento. Apontarei como possíveis razões, o facto do espaço de apresentação, o pátio, que tornou a cena mais intima e permitiu uma melhor interacção com o público. E realmente o pátio preencheu-se de uma energia muito boa, que deu um crescimento fantástico à performance.
Três espectáculos bem distintos, mas que cada um á sua maneira de revelaram muito gratificantes para o festival.

terça-feira, outubro 03, 2006

Mindelact 2006 - Memoria descritiva





Mais um festival Mindelact. De 08 a 17 de Setembro realizou-se na cidade do Mindelo a festa do teatro. Este ano o festival começou logo com a amputação dos recursos financeiros, mas que apesar de tudo não acinzentou esta festa, devido ao espírito da equipa de produção, que teimosamente se esforça por gerir este acontecimento sem se deixar cair no desânimo. Vem provar que já nada fará demolir este festival, já é um acontecimento que faz parte da vida dos cabo-verdianos.
Como um ritual, em Setembro no Mindelo respirou-se teatro. Durante dez dias a cidade agitou-se e todas as energias confluíram no Centro Cultural do Mindelo.
Dividido por três espaços e quatro tempos: Auditório, Pátio e Rua; 17h, 21h, 21.30h e 23.30h, a Teatrolândia, a Animação, a Programação Principal e o Off preencheram as expectativas do público mindelense habituado a este formato.
A abrir o festival, e depois da agitação das formalidades de abertura dos palcos, o público apreciou a tão esperada “Um vez Soncente era Sábe», musical sobre o Mindelo do início do século XX. Importante ressalvar aqui o facto simbólico de neste espectáculo terem participado elementos de vários grupos de teatro de São Vicente, o que por si demonstra o forte espírito de grupo que se vive no festival. Uma abertura que provocou rasgos de sorrisos, mas que ficou um pouco aquém da expectativa, uma vez que apesar das potencialidades cénicas desta peça, os problemas de ordem técnica pesaram um pouco na fruição do mesmo. Mas fez-se eco o “Wellcome to cidade d’Mindelo” (música integrante do espectáculo) e não podia ter sido melhor escolhida a peça de abertura desta festa de teatro.
No segundo dia, o Teatro Art’Imagem apresentou Ratos e Homens de Steinbeck, um dos momentos altos do festival, que cortou fôlegos na plateia e apresentou a simplicidade do drama humano. Pouco habituado a este “soco na barriga”, o público do festival ficou quedo e em silêncio, ora por cumplicidade com a cena, ora por não haver outra opção de reacção. Muito mérito para estes actores, mas de sublinhar o forte abraço sentido ao actor cabo-verdiano João Paulo Brito, agente teatral desta nação. Logo de seguida e na mesma noite o público teve oportunidade de quebrar este silêncio sentido, com o Enano, jovem clown que fez explodir gargalhadas no pátio e que foi uma das presenças mais marcantes deste festival, enchendo de alegria os espaços por onde passava. Este clown, vindo de Espanha, levou a sua alegria até S. Pedro e Calhau (duas pequenas aldeias na ilha de S. Vicente), levou com ele de praça em praça uma multidão de gente, e rasgava em cada canto um sorriso. Se se tivesse que eleger um agente teatral que carregasse a bandeira com o verdadeiro espírito de festival, concerteza seria eleito Enano, por unanimidade.
E este espírito foi vivido em pleno no quarto dia do festival. Completamente off off, os grupos se cruzaram no bar do festival e entre palavras e músicas sente-se um verdadeiro ritual orgiásticas de partilha de mundos e experiências. Por volta da meia-noite no Centro Cultural do Mindelo, cantou-se o fado, a morna, o flamengo andaluz e palavras cruzadas de outros mundos, num perfeito improviso de festa e assim se sentiu a verdadeira consciência de festival, de mundos que se cruzam, não só mundo teatrais mas experiências pessoais ricas de emoção e risos. E o brilho desta noite teve eco nos dias seguintes, ecos de felicidade, de cumplicidade. Pois, como mesmo salienta o seu director, este festival é batalha ganha, mais que não seja, pelo sentido de partilha, de amizade e criatividade vivido entre os grupos participantes. Foi neste mesmo dia que foi apresentada a tão esperada produção da casa, ou seja, a peça do Grupo do Centro Cultural Português do Mindelo, Mulheres na Lajinha. No seguimento do historial da comédia nesta cidade a peça foi muito bem recebida e grande parte da plateia se identificou com as palavras das quatro mulheres na Lajinha. Apesar de não ter surpreendido, ser uma encenação simples sem grande novidade, a peça divertiu e mostrou como o riso é ainda o ponto forte do teatro que se espera neste festival. O público vai também para se divertir e esta peça cumpriu esse desejo.
Vindo de Portugal, tivemos a novidade do Staticman, que seduziu na totalidade os espectadores do Mindelact. Com performance antes do espectáculo da sala principal, o homem-estátua presenteou-nos com algumas das suas criações de imobilidade.
A programação infantil, a Teatrolândia, foi duma qualidade exemplar, e o público jovem pode ver espectáculos de grande qualidade, onde encontramos encenações maduras e exigentes. De salientar a beleza dos figurinos em todos os espectáculos. Ficamos com a certeza que os espectáculos para a infância se encontram num bom nível em Cabo Verde, uma vez que todas estas produções foram realizadas por grupos cabo-verdianos. O mesmo já não se poderá falar das peças apresentadas no Off, que de uma forma geral mostraram fragilidades ao nível da encenação, da interpretação, mas que duma forma interessante atingiram outros objectivos. O grupo de Sto Antão apresentou um pequeno projecto de clown com jovens adolescentes. Sal e S. Nicolau trouxeram a sua forma simples e sincera de improvisação sobre temas corriqueiros e assim partilharam um pouco das suas vivências e beberam esta experiência de festival de teatro. Com excepção ao nível de qualidade cénica tivemos a peça Mangatchada, trabalho final do XI Curso de Teatro CCP/ICA.
Dentro da programação principal, para além de Ratos e Homens de Portugal, tivemos um grupo das Canárias, Teatro del Encanto, que apresentaram a peça O Jardim Prometido construída à volta da mulher, o universo onírico da mulher cabo-verdiana, onde entre alguma confusão linguística e beleza de acção o público ficou convencido. Mas de sublinhar a fantástica peça Rostos de Loanda e Luanda do grupo angolano Miragens Teatro, com uma qualidade surpreendente. Com uma energia contagiante este espectáculo prestou a devida homenagem às gentes do passado de Luanda e conseguiu transportar até Cabo Verde a musicalidade e corporalidade do teatro angolano. O público foi ainda brindado com o contador de histórias vindo da Galiza, Quico Cadaval, que acompanhado pelo músico Fran Perez partilhou três histórias fantásticas e por momentos sentiu-se que a sala de 250 lugares se tinha transformado num pequeno aconchego de «Era uma vez…». Fabuloso! Repetido informalmente uns dias depois no pátio, mostrou que este festival é também construído momento a momento, faz-se ao sabor das energias que fluem e partilhas que se criam. Um só actor em palco foi repetido dias depois com o show do actor luso-brasileiro Júnior Sampaio, desta, num tom provocatório com um espectáculo bizarro e algo estranho a este público, deixando o espectador desprevenido algo confuso e reflexivo. Presente pela segunda a Companhia Livre de Teatro, do Brasil, pelo tom de partilha com o público, construiu ela mesmo uma página deste festival. A peça, em estreia absoluta, girando à volta duma relação a três, cativou pela boa interpretação dos actores. De salientar que este grupo foi reconhecido com o Prémio Copacabana 2006, prémio financiado pela Tecnicil, mecenas deste festival. Da capital tivemos a presença de dois grupos, o Fladu Fla, com a Profesia di Kriolu, peça estreada em Santiago no Março Mês do Teatro e Finka Pé, com Maria Badia. Interessante ressalvar que esta segunda peça teve uma recepção bem mais positiva ali no Mindelo do que na Praia, talvez pela própria intimidade do espaço onde se realizou que ajudou à interacção com o público ou até mesmo pela própria distância que existe entre esta personagem «badia» com o público mindelense, o que provocaria algum interesse extra. Ainda no palco principal se apresentou o Grupo de Teatro Nova Sintra da ilha da Brava com a peça Descarado, mostrando a simplicidade do fazer teatro, mas com uma fluidez e humildade interessante a cativante. Sempre a expressividade dos actores se mostra o ponto alto do trabalho cénico.
Como vem sendo hábito, o festival proporcionou para além do prazer de fruição cénica, a possibilidade de formação. Realizaram-se as acções de formação: Teatro Africano, Encenação, Técnica Vocal, Atelier Prático de Cenografia e Técnica de Clown. Apesar da pouca participação nas mesmas, de aplaudir estas iniciativas que assim completam a rica programação deste festival.
É de apontar o passo fundamental que foi dado nesta edição do festival, que foi o finalmente se ter activado a politica de Mecenato, tendo a Tecnicil aberto esta nova Era da politica de financiamento do teatro.
Neste Mindelact a variedade que se espera deste tipo de iniciativa, ultrapassou o esperado, com grupos e estéticas bem contrastantes. Tivemos «socos na barriga» e gargalhadas fáceis, tivemos acções de formação e festas de bar, tivemos a imobilidade do homem-estátua ao lado dos ritmos de Luanda, tivemos histórias fantásticas ao lado de provocações bizarras, e em momento algum o público se entediou. E tivemos ainda lugar á memória com a fantástica Instalação Cenográfica do espectáculo do ano anterior Auto da Compadecida. Mais uma vez se fecha um festival com a abertura das cortinas do próximo, para que não se sinta o fecho mas sim o «galope» de quem acredita que o Festival Internacional de Teatro do Mindelo está para ficar!

Mindelact 2006 - Mulheres na Lajinha






O espectáculo Mulheres na Lajinha do Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo (GTCCPM) a partir do livro «Mar da Lajinha» de Germano de Almeida, agradou mas não surpreendeu. Na memória do público ainda estava o surpreendente «Auto da Compadecida» do ano anterior, e como o espectador exige sempre mais, a produção deste ano ficou um pouco aquém das espectativas. Mas se a espectativa malogrou, a sua efemeridade foi ganha, pois o público se divertiu, passou um serão agradável.
Quatro mulheres encontram-se na praia da Lajinha e aí desenrolam um novelo de conversas passando por saudades, sexo, adulterio, sofrimento, etc., temas banais, que tanto podiam ser na lajinha como noutra parte do mundo.
O espectáculo foi eficaz ao nível de leveza e divertimento, levando á certa identificação do espectador com aquelas mulheres. Mas foi no entanto, composto de risos fáceis, caindo muitas vezes em clichets esgotados e denotando até alguma fragilidade tanto a nível de encenação como de texto dramático. Mas não era de todo uma dramaturgia complexa, mas sim um deambular de pensamentos e riolas que facilmente encontraremos nos espaços do feminino.
Ludmilla, Zenaida, Bety e Sílvia, mais uma vez corresponderam ao esperado com uma energia cantagiante e digna de muitos aplausos. E se dramaturgicamente a peça não seria tão interessante, ao nível da interpretação foi bastante exigente e consequente. Com a sua marcante expressividade e entrega, estas mulheres, seiva do espectáculo, conquistaram-nos e levaram-nos com elas nas suas aventuras.
Ao nível da cenografia, sem grande complexidade, os elementos apresentados estavam perfeitamente resolvidos, sem no entanto nos seduzir. A luz acompanhou o bom ritmo da acção e claramente se encontra bem resolvida todas as questões cénicas, e em momentos pontuais deparamo-nos com francas belezas imagéticas.
A certo momento sente-se que nada de novo nos traz este espectáculo, sem que no entanto isso o prejudique. A plateia gostou de leveza e de poder rir com estas mulheres durante esse tempo ritualista do teatro.
João Branco, com um considerável manancial de encenações, cria de certo modo um horizonte de espectativa, o que é bastante interessante, mas devido a isto mesmo, sentiu-se este espectáculo mais como um “entre-acto” do que propriamente uma produçao “de peso”.
Não surpreendeu, mas convenceu.