sexta-feira, julho 07, 2006

" A função da crítica teatral no novo século" de Sebastião Milaré

A crítica é inerente à produção da cultura dramática.
Não se pode imaginar o desenvolvimento de um teatro nacional sem o respaldo de intelectuais conhecedores da arte, capacitados à análise e discussão do fenómeno estético. Sob esse ponto de vista, a crítica tem função analítica e organizadora das diferentes correntes de pensamento que incidem na produção dramática. Isso não se altera com a mudança do calendário e permanecerá valendo no século que se inicia.
O que me parece importante discutir é o espaço da crítica nas novas conjunturas e em face das tecnologias que transformam radicalmente os meios de comunicação.Por tradição, temos a imagem do crítico ligada a um jornal, à coluna de um diário ou semanário, e sua função confunde-se em certa medida à do jornalista: informa o leitor sobre a qualidade do espectáculo. Isto é verdadeiro... ou melhor, é uma meia verdade. O jornalista ao redigir a notícia deve ser objectivo, ater-se ao facto e não interpreta-lo; deve ser tão imparcial quanto possível.
Já o crítico é também objectivo, mas interpreta o facto (no caso, a obra colocada em cena) e é apenas relativamente imparcial, já que a apreciação da obra cénica tem muito de subjectivo, representando antes de tudo um ponto de vista - o ponto de vista do crítico. Diferenças que separam nitidamente a função do crítico à do jornalista, embora nada impeça que uma pessoa exerça ambas as funções com muita competência.O problema dessa imagem do crítico é que o afasta do criador cénico para aproximá-lo do leitor do jornal.
Numa simplificação, apenas o leitor seria o interlocutor do crítico, dificilmente o artista. Isto leva à crença de que crítica desfavorável ao espectáculo determina o fracasso do mesmo; assim como crítica favorável engorda a plateia. Crença que, é sistematicamente negada pela realidade: muitos espetáculos francamente repudiados pela crítica tornam-se triunfos de bilheteira e outros, elogiados pela crítica, ficam com as salas vazias de espectadores.
Então a crítica é uma inutilidade? Certamente, como inútil é a própria arte. E quanto mais gratuita for, quanto menos estiver "a serviço" do que quer que seja, mais próxima estará de trazer grandes benefícios à sociedade.
Já ouvi vários críticos - e dos bons - colocarem-se como "espectadores privilegiados". Permito-me discordar deles. Na verdade, o bom crítico domina um instrumental teórico que pouco espectador possui, e tem o olho treinado para ver subtilezas, movimentos e gestos cénicos, conseguindo imediatamente relacioná-los à obra ou ao pensamento poético que os inspira ou que se pretende materializar cenicamente. Dessa relação é que nasce o ponto de vista crítico.
Assim, o crítico é um especialista e não um "espectador privilegiado".
Vê o espetáculo como um pensamento transformado em imagens, sons, movimentos, luzes, e discute esse pensamento. Sua interlocução com o leitor do diário é positiva. Não qualquer leitor, certamente, mas aquele que tem algum interesse pela arte. A leitura constante de boas críticas ajudará esse leitor a educar a sensibilidade, a desenvolver capacidade analítica, habilitando-se à perfeita fruição do produto estético - deixa de ser mero "consumidor".
Sendo pessoa capaz de ler e discutir o pensamento veiculado pela obra (ou o pensamento que é a obra), outro importante interlocutor do crítico é o próprio artista, o criador céênico. A relação entre esses personagens é sempre complicada, pois implica a imagem que cada um faz de si mesmo e do seu trabalho. Às vezes tal relação desanda em agressões.
Mas, sobra, inevitavelmente, a reflexão expressa na crítica que, de uma maneira ou de outra, oferece algum subsídio ao criador. E esse facto exprime, no contexto do teatro actual, novos campos e novos espaços onde a actuação do crítico está muito mais próxima à do criador, estabelecendo novos modos de diálogo.
Nesses novos espaços, ainda não suficientemente explorados nem resolvidos, surgem duas figuras que nem sempre são encarnadas por críticos, mas cujas funções estão absolutamente vinculadas ao exercício crítico: a do dramaturgo ou dramaturgista e a do produtor.
A primeira tem ligação orgânica com o trabalho criativo, na medida em que busca junto dos criadores cénicos estabelecer perspectivas para a interpretação da obra.
A segunda, faz ponte entre a criação estética e o público, buscando captar a dinâmica da produção teatral e organizando sua mostra em determinados locais.
Os periódicos, hoje, parecem ameaçados pela Internet. Mas seria um exagero estimar a "morte" da imprensa diária, como foi exagero estimar que o cinema mataria o teatro e, depois, que a televisão mataria o cinema.
Mais legítimo seria louvar o aparecimento de um novo meio para veicular idéias. Surgem na rede sites noticiosos, abrigando links de crítica teatral. Porém, quase sempre, esses sites reproduzem no novo meio linguagens e critérios da imprensa diária, confinando a reflexão crítica a planos secundários. A Internet, no entanto, é um meio generoso, amplo, democrático, e poderá vir a ser importante espaço à reflexão crítica, com sites dirigidos ao público interessado na arte, sem restrições nem condicionamentos editoriais.
Creio que a função da crítica teatral neste novo século continua essencialmente a mesma, porém dinamizada e difundida por novos espaços. Justamente esses novos espaços é que devem ser avaliados, otimizados, de modo que a crítica possa readquirir seu sentido didático, provocador e criativo.
A crítica teatral frente às novas tendências cénicas
Ao longo do século 20 a encenação foi adquirindo autonomia, separando-se da literatura, da qual tradicionalmente era entendida como subproduto.
As revoluções dos conceitos cénicos desde Antoine até Brecht, passando por Paul Fort, Gordon Craig, Stanislavsky, Meyerhold, Komisarjevsky, Artaud e tantos outros, abriram horizontes que foram exaustivamente explorados por criadores no mundo todo, depois da Segunda Guerra, incidindo em novos paradigmas, novas linguagens, conferindo à encenação peculiaridades que a tornam um tipo de expressão singular, único, provido de dinamismo próprio.
Sem dúvida o texto dramático continua sendo um dos fundamentos do teatro, mas deixou de ser o fundamento.
Por outro lado, encenadores geniais, que dominam códigos estabelecidos e os transgridem, revelam valores no texto dramático que o crítico e o ensaísta tradicionais não conseguiam vislumbrar.
A liberdade de desconstruir e reconstruir, marca da encenação contemporânea, possibilita a exploração desses valores numa viagem para dentro da obra, examinada e vivenciada na prática cénica e não apenas com o instrumental teórico do ensaísta. São procedimentos e códigos novos que desvendam horizontes insuspeitados em peças de Shakespeare, por exemplo.
E assim o teatro se reinventa a cada passo, exigindo do crítico novas posturas, novas maneiras de se relacionar com a obra e nova ética.
Não faz mais sentido a crítica que se prende ao texto como um náufrago a um pedaço de madeira, passando rapidamente sobre as questões da encenação.
E também não faz mais sentido o crítico que se mantém afastado do fazer teatral quotidiano, como se a relação directa com os criadores fosse conspurcar o seu trabalho.
Não faz mais sentido fechar-se numa interpretação teórica do original e não admitir que possa haver diferentes leituras da obra, considerando "um erro" qualquer interpretação diferente da sua.
O crítico contemporâneo tem que soltar as amarras, deixar-se conquistar pelo dinamismo do teatro, admitir a contradição como matéria-prima do pensamento dramático em sua materialização cénica.
Evidentemente o texto continua sendo um grande referencial da criação cénica, mas interessam igualmente os processos criativos, os meios pelos quais o artista procura actualizar os velhos textos e, com eles, desvendar novos horizontes, novo entendimento do ser humano, da condição humana.Mas o próprio processo pode, muitas vezes, implicar a dramaturgia, dispensando o texto formal ou convencional.
O crítico contemporâneo precisa aceitar os desafios desse teatro. Precisa dialogar com os criadores, informar-se dos processos. Só assim evitará o risco de confundir um dado novo com modismo e enaltecer modismos como inovações.
O polêmico Antunes Filho desabafou certa vez, frente a confusão de conceitos de alguns críticos em comentários sobre montagens suas: "Não se pode ver os novos paradigmas com o olhar velho". E essa é uma grande verdade.

1 Comments:

At 2:05 da manhã, Blogger Ana Ferreira said...

Ótimo! Isso tem de ser dito.

www.tudoradio.com/noquintal
A gente diz lá também. ;)

 

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