O grotesco nos palcos da Praia
Um poderoso desmascarado e um louco que desmascara, algo nos estranha nesta premissa e mostra a relatividade do homem, a relatividade das relações sociais e humanas.
E é também de relativismo que nos fala, dum relativismo constrangedor, caótico, e desconfortável para quem procura um «assento confortável». È o relativismo do poder social, o relativismo do poder criativo, o relativismo do poder familiar, o relativismo do tempo.
Falamos concerteza da peça O Doido e a Morte, do português Raul Brandão, com encenação de João Branco, apresentada pelo grupo de teatro do Centro Cultural Português do Mindelo, nos palcos da cidade da Praia no último fim-de-semana.
O espectáculo trouxe à Praia as questões existenciais tão pouco presentes no panorama teatral desta ilha. Por momentos temos o privilégio de abandonar o engajamento tradicional tão comum por estas bandas para vermos perante os nossos olhos as questões de todos nós, homens e mulheres, nascidos a norte ou a sul.
Por duas noites a cidade da Praia teve o privilégio de questionar a vida, de questionar a morte, e sobretudo, de questionar a subjectividade destas duas faces do homem. E se a morte foi o motivo, o argumento para a criação dum universo de ficção na vida do Governador, foi ainda pelo trabalho ficcional de João Branco que pudemos ver tão eficazmente este desmontar do paradigma vida/morte.
João, como aliás é sabido, mais uma vez foi mestre na actualização do texto nas tábuas. O encenador respeitou o texto na integra do autor português, unicamente inseriu no inicio do espectáculo algumas deixas que remetem para um contextualizar espacial da cena e ainda um extracto dum texto alusivo à realidade teatral, que muito inteligentemente deixou em aberto a sua justificação, remetendo para quem vê, a sua actualização a Cabo Verde ou ainda a uma questão universal do fenómeno teatral.
De notar que JB usou na peça aquelas últimas palavras do texto, que Raul Brandão desejou, as tão fortes palavras que «ofendem a decência dos ouvidos das senhores», e que tão eficazmente rematam o drama.
O espectáculo conquistou o público desde o seu início com tão inusitado abrir da ficção.
Na hora marcada abrem-se as portas, o público entra e depara-se já com a cena instalada, não há mais lugar para fuga. Já é cúmplice.
Nos momentos a seguir vive-se teatro na sala do CCP, teatro na verdadeira e pura acepção do termo, vemos nitidamente os actores ao lado das personagens, vemos nitidamente o espaço e tempo de ficção ao lado do tempo real. E só conseguimos ver isso confortavelmente porque no palco representa-se, «faz-se de conta» duma maneira tão maravilhosa que não nos incomoda nada ver os actores no palco mesmo fora da ficção, aliás a dado momento eles são invisíveis para nós, já ninguém acredita que eles lá estão.
É isto que é o teatro, convencer o espectador deste faz-de-conta, torná-lo cúmplice. A encenação fazendo jus a tão simbólica e grotesca dramaturgia, apresenta-nos uma estética bastante grotesca e algo caricaturada.O cenário simples, algo estranho (encontramos uma cenografia do mobiliário muito atemporal ao lado de alguns adereços bem marcantes temporalmente) é por si mesmo de um estranhamento interessante pelo grotesco e híbrido que apresenta, obviamente eficaz. Neste jogo combinatório situam-se também os figurinos. Mas é importante ressalvar que nestas duas questões algo salta à vista do espectador: o carácter sóbrio e convencional - nada está em exagero e tudo é obviamente de ficção. O uso da máscara vem assim compor o conjunto fechando com chave de ouro a teatralidade plástica que se procura nesta peça e sublinhando o conteúdo grotesco do tema. Foi notório o trabalho prévio sobre a técnica da máscara na performance dos actores não deixando no entanto de ser notado algumas dificuldades a nível da visibilidade e que por vezes chamava à atenção do espectador atento. Mas é interessante concluir que no meio de tanto absurdo, nem isso foi incómodo na peça. Assim como a porta do escritório do governador que por várias vezes os actores esqueciam da sua existência.
Percebe-se perfeitamente que este espectáculo teve um período considerável de ensaios, de produção e dedicação, pelo trabalho profissional ao nível da performance dos actores de marcante teatralidade (segundo o encenador, a teatralidade é o pilar desta encenação), pela precisão com que foram criadas e operadas a luz e a sonoplastia, assim como a necessária e interessante realização dum texto programático, que trouxe até ao público a consciência de produto maduro, acabado.
A sala estava composta de público em ambos os dias de apresentação, mas estranhamente sentiu-se a ausência dos fazedores de teatro destas bandas, sentiu-se a ausência de reflexão tão interessante naquele tempo que procede o espectáculo, no tempo das conversas de átrio.
Este espectáculo estava enquadrado na actividade Março - Mês do Teatro, que para além de ser uma simples agenda de espectáculos, deverá ser concerteza um espaço e um tempo de cruzamento de estéticas, de experiências, tão necessárias para o enriquecimento do nosso teatro.
O Março - Mês de Teatro continua no próximo dia 23 com a apresentação da peça O Último Desejo, pelo grupo Cena Aberta, pelas 19h no Centro Cultural Português da Praia.
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